trabalhar com ciência negra
pois combater o racismo é um dever de todas e todos os pesquisadores
o dia 20 de novembro geralmente era um dia como qualquer outro para mim, não apenas porque não é feriado onde eu moro, mas também pois costumava vê-lo como um dia que pertence exclusivamente às pessoas negras, um dia de reflexão próprio destas, no qual as pessoas brancas exercíamos apenas o “lugar de escuta”. como nós, brasileiros, fomos educados com o mito da democracia racial, talvez nos seja natural considerar raça como qualquer coisa corriqueira, e vê-la como uma questão pessoal de cada um.
por isso, raça é um dos temas mais espinhosos que temos para estudar na contemporaneidade. todo o passado presente em nosso dia-a-dia segue atravessado por questões raciais, e digo que tem espinhos pois por mais que tentemos abordá-las com cuidado, essas questões deixam marcas, machucados e arranhões em quem as pesquisa, apesar de deixarem ainda mais em quem as vive cotidianamente.
a minha monografia teve como principal objeto de estudo o romance “esse cabelo”, de djaimilia pereira de almeida. mulher negra, nascida em angola mas radicada em portugal, djaimilia narra a história de mila, uma pessoa como ela, também mulher negra e também dividida entre mundos, dona de um cabelo crespo que serve à narrativa como um fio condutor de memórias e vivências, ao mesmo tempo um personagem e uma metáfora de sua identidade racial e de gênero. sua escrita é dotada de uma complexidade muito bonita de ler e de desenredar.
um dos meus principais medos quando escolhi trabalhar com esse livro era o de estar pesquisando algo “fora” da minha realidade, de estar “me apropriando” de uma narrativa que não tinha nada a ver comigo. por que eu, uma menina branca, me aventuraria a falar de identidade racial, de um cabelo crespo tão diferente do meu? será que estou roubando e ocupando lugares que não são meus? será que estou utilizando meu espaço privilegiado na academia para me apoderar de um assunto que deveria ser estudado por outras pessoas?
como uma mulher branca, eu experiencio e posso experienciar muitas opressões a partir da categoria gênero, mas eu nunca vou sentir na pele as opressões sentidas por quem não é branco. o racismo afeta esses indivíduos de um modo que provavelmente jamais vou entender; no entanto, dou o meu melhor para ser e estar consciente dos problemas causados pela construção social de raça ao longo da história — uma construção que, afinal, é intimamente ligada às instituições da branquitude e da supremacia branca, sem as quais o racismo não existiria, ou pelo menos não operaria no nível agressivo e opressivo em que opera.
conforme mergulhava em livros, artigos, textos e outros documentos que se relacionavam e enredavam com o romance de djaimilia, percebi que apesar de complexo, o tema se tornava muito mais universal do que antecipei. a bibliografia que se formou aos poucos foi decisiva para que minhas preocupações fossem atenuadas: das dezenas de autores e autoras que li para fundamentar meu trabalho, mais da metade foram mulheres; e dentre elas, muitas mulheres negras, como grada kilomba, carla akotirene, bell hooks, patricia hill collins, sueli carneiro, inocência mata, além da própria djaimilia pereira de almeida.
o feminismo negro foi essencial para a minha pesquisa, e penso que ele nos fornece a melhor e mais precisa maneira de existirmos e resistirmos no mundo contemporâneo: a interseccionalidade. ao colocar-me na minha própria encruzilhada, observo com clareza onde os outros indivíduos se situam, e partindo da minha posição nas “avenidas identitárias", posso entender melhor as semelhanças e diferenças entre nós. uma abordagem interseccional pressupõe não apenas consciência da própria identidade, mas também empatia e responsabilidade para/com as identidades dos outros.
após passar quase um ano inteiro lendo, estudando, ouvindo e dialogando com pessoas negras e suas obras, descobri que nada é mais benéfico para o desenvolvimento social e humano da ciência do que a inclusão de novos sujeitos e novas visões de mundo na academia, que ainda é majoritariamente branca e repleta de heranças do pensamento colonial.
a ciência tende a evoluir bastante com o estudo de novas perspectivas e de epistemologias alternativas, que podem nos auxiliar na compreensão tanto de individualidades universalizadas, quanto de universalidades individualizadas. talvez a gente não perceba imediatamente o efeito que a emergência e a consolidação de autores e autoras negras tem na sociedade, mas a ocupação que fazem desses espaços é fundamental para buscarmos um ambiente verdadeiramente plural, justo e em que todos se sintam incluídos e representados.
outra coisa que já sabia há um tempinho, e agora é bastante óbvio, é que o racismo não é problema só dos negros, mas de todos e todas nós, que também tivemos nossas raças socialmente construídas. aliás, para que o contexto racista em que vivemos mude de fato, são os brancos que mais precisam ser antirracistas, que devem cooperar para que tenham mais negros participando nos espaços públicos, ouvir e ler intelectuais negros, engajar com o trabalho de artistas negros, enfim, que precisam normalizar as vivências e experiências de todos e todas em qualquer ambiente que eles decidam frequentar. não podemos utilizar os próprios privilégios que temos enquanto pessoas brancas para manter tudo como está, mas sim para perturbar e mudar a ordem racista, sem se conformar jamais com as injustiças.
quis escrever esse textinho para marcar o primeiro dia da consciência negra em que sinto que realmente tenho sobre o que refletir e contribuir para eventuais conversas sobre o tema. a consciência é negra mas também é coletiva, é geral, e a mensagem desse dia deve ser abraçado por nós em todos os outros também.