os feitos da tua, e da minha, história

ou a ideia insuportável de uma vida sem grêmio

Ambra
9 min readJul 27, 2023

uma vez, na faculdade, um professor nos passou a tarefa de escrever um ensaio contrafactual sobre a época do chamado equilíbrio de poder europeu em meados do século XIX, baseado em um capítulo do livro “diplomacia”, do henry kissinger. para quem não sabe o que é uma análise contrafactual, é basicamente olhar para uma cadeia de eventos e escolher um deles para “subverter”, para perguntar mas e se isso tivesse acontecido desse e não daquele jeito?; por exemplo, a minha pergunta foi “e se a áustria tivesse apoiado a rússia na guerra da crimeia (1853–1856)?” — na história como conhecemos, os austríacos apoiaram inglaterra e frança, sendo esse um dos primeiros eventos que guiaram lentamente o continente europeu às grandes guerras.

antes de começar o ensaio, lembro-me de pensar que grande bobagem essa proposta, parece perda de tempo conjecturar sobre algo que nunca aconteceu, até um pouco desnecessário né? mas me pus a escrever e me diverti bastante no processo, acho que foi um dos meus trabalhos mais bem escritos, até porque pude utilizar a imaginação, ficcionalizar algo que honestamente é muito entediante (não se esqueçam que a referência principal era kissinger). talvez a minha primeira reação receosa tenha vindo de uma crença pessoal que tenho de não ficar remoendo o passado, de não me deixar levar pelos “e se” da vida, pra mim o que passou, passou, cabe a nós aprender a lidar com as nossas escolhas e ao tempo curar as feridas (sim, o coitado trabalha e trabalha).

uma amiga veio me visitar nessa semana e eu tava comentando com ela que todas as coisas que escolhemos e deixamos de fazer, todos os sim e os não que dissemos ao longo da vida, nos trouxeram exatamente ao lugar em que estávamos: juntas, na beira da praia, tentando tomar um sorvete que derretia a uma velocidade assustadora, juro pra vocês, não sei nem explicar o que aconteceu aquele dia, o sorvete não aguentou nossa fofoca, talvez tenha sido o coração quentinho por estar ao lado dela conversando sobre a vida de uma forma tão aberta, tão sincera, o que tento fazer aqui de vez em quando.

voltando às decisões, assim como na história com h maíusculo, na qual normalmente aprendemos os fatos em sucessão, uma corrente de acontecimentos indissociáveis e causantes uns do outros, a nossa própria história é também algo nesse molde, uma série de pessoas, lugares, paixões, objetivos, oportunidades e coisas em geral que juntas formam a nossa personalidade, quem a gente é e para onde a gente quer ir, ou pelo menos deseja estar, ou pensa que vai. ver-nos como esse conjunto de fatores muda muito a nossa percepção de nós mesmos e dos outros; me vem demais a imagem daqueles quebra-cabeça especiais da franquia star wars em que cada peça do personagem é uma colagem de cenas do filme:

esse yoda na verdade são milhares de frames e sim, é o quebra-cabeça mais difícil do mundo, uma complexidade sem fim; só não mais do que nós, seres humanos. fonte

em sintonia com os temas que trago hoje, o segundo filme do homem-aranha no aranhaverso inspirou uma discussão muito interessante na internet esses dias, fazendo todo mundo refletir sobre os eventos-chave das suas próprias vidas; aquela situação que, se não tivesse acontecido, teria lhes transformado em alguém completamente diferente. confesso que eu, na minha leve aversão a relembrar do passado, sempre em frente, o sol na cara e nunca nas costas, não parei pra pensar a sério nessa questão até o dia de ontem, onde ela me foi servida em uma porrada, para não me sobrarem mais dúvidas.

corta pra 2011. eu, adolescente, doce e inocente, nos primórdios do meu fanatismo por futebol, acompanhando o borussia dortmund recém campeão da bundesliga, uma molecada muito querida jogando lá, talvez sseja bem legal acompanhar futebol né, adoro eles mas tenho que achar um time brasileiro também! em busca de um clube pra chamar de meu, meu pai não levou a sério e nem fez grandes pedidos para eu torcer para o grêmio; a minha mãe é vasco e quis me poupar de sê-lo; os outros membros da família moravam tudo longe, os que moravam perto não ligavam muito pra futebol; passa um tempinho e meu pai decide me levar a um jogo no olímpico, e o resto é história — e põe história nisso.

agora vamos avançar para ontem, 26 de julho de 2023. mais uma derrota para o flamengo, mais um laço em mata-mata, na copa do brasil ainda, competição na qual julgamos ser os reis, pense em uma monarquia em risco, no nível de ameaça que o luís xiv sofreu, mas nossa cabeça ainda está em pé, temos que seguir a todo custo, agora já foi e ainda tem o jogo da volta, o não já temos, agora queremos a humilhação ou algo desse tipo, não é? enfim, testemunhar mais uma partida dessas em que nada dá certo, contra um time que vem nos massacrando de todas as formas possíveis de uns anos para cá, foi um momento quase catártico pra mim, tipo ponto de ruptura mesmo, ou vai ou racha, me perguntando quanto mais eu aguento disso, não é possível, a telinha do streaming mental deseja continuar assistindo? etc e tal.

confesso que estava mentalmente presa aqui. fonte

aí a loucura rampante. no momento mais irracional dentre os tantos momentos irracionais que o grêmio me proporciona, tentei fazer um contrafactual da minha história, juntei todo o temor que tenho dos “e se” do passado e formulei, com todo meu corpo, a seguinte paranoia: talvez tivesse sido melhor nem ter começado a torcer para o grêmio em primeiro lugar, será que ainda dá tempo de fingir que nada disso aconteceu? já é tarde demais para dizer que futebol não me afeta, que eu não me importo com essas pessoas correndo atrás da bola vestindo um uniforme tricolor, que eu não esnobo a minha saúde física, mental e financeira para acompanhá-las sem basicamente nenhum retorno? existe alguma lógica por trás do fanatismo por um clube ou vai ser sempre esse gosto agridoce na boca, se tá bem tô nas nuvens, se tá mal tô no chão, e cadê eu agora? será que o grêmio me impede de ser uma pessoa melhor com os outros e, principalmente, comigo mesma?

espiralando-me internamente, o grito de ajuda que, junto com o de gol, não saiu, os dois entalados na garganta inflamada, como é fácil se perder no personagem, e devo admitir que construí-lo com todas as fibras do meu ser, sou ambra e sou gremista, meu ascendente é em grêmio, a lua tricolor, o meio do céu é azul, preto e branco, a vênus em libra pois romantizo tudo, até mesmo torcer para um clube de futebol. e é ela que me ajudou a sair do transe (que durou pouco, amém) e a ver o lado bom das coisas, a reconhecer o dia de ontem não como um evento-chave de um possível anti-gremismo, mas como mais uma lição dentre as muitas que já tive a partir do sim que assinalei ao clube em 2011, uma afirmação de que o problema não está em mim ou no grêmio, mas na forma com a qual eu escolho me relacionar com ele.

afinal de contas, o que é o grêmio? quem é o grêmio? o que faz, onde vive? são tantas respostas para essa pergunta, literais, irônicas, apaixonadas, comedidas, pontuais, metafóricas e é bem isso e mais, o grêmio é um clube de porto alegre, é os amigos que fazemos pelo caminho, é uma ligação para o meu pai xingando o time no intervalo do jogo, é puro sentimento, é pegar ônibus de madrugada pra ir pra casa, é uma promessa com nossa senhora, motivo de romaria, um cabelo e até mesmo a pele pintada de azul, o uniforme mais lindo do brasil, é uma cerveja gelada e um quentão fervendo em época de copa, é tri da libertadores, tri rebaixado, tri legal. por mais absurdo que possa parecer, no fim das contas a principal resposta a essas perguntas é que o grêmio sou eu, ou que eu sou o grêmio; a essa altura não faz mais diferença, só sei que somos.

por isso, uma tentativa de recontar a minha história sem falar de grêmio me parece impossível, inimaginável, não é nem algo que eu consiga desenvolver, como fiz com a situação da áustria ao longo de 1800 e poucos; por mais que tentemos falar de locais imparciais e distanciar-nos das nossas experiências e vivências, no fim das contas tudo o que escrevemos vem da nossa subjetividade — aliás, lembrei agora que em outro trabalho nessa mesma disciplina, eu escrevi usando um jogo do grêmio como exemplo, pois o futebol e a diplomacia tem mais em comum do que imaginamos (frase dita pelo professor).

por causa do grêmio eu melhorei o meu relacionamento com meu pai e meu irmão, visitei cidades e estádios pelo continente, fiz amigos para a vida toda, conheci o meu namorado, aprendi a conviver com a alteridade futebolística, vivi grandes histórias divertidas de contar (e algumas nem tanto), sofri, celebrei, amei, ri, chorei, fui, sou e serei. tirando minha irmã, acho que todos os leitores desse texto só estão aqui por causa do tal clube porto-alegrense que venho mencionando, então percebam o meu dilema maluco. oras, uma vida sem grêmio é uma vida sem vocês, e uma vida sem mim.

enxerguei que o ponto de ruptura não é com o grêmio em si, mas é na maneira com que eu processo os eventos futebolísticos ao meu redor, como se todos tivessem o mesmo peso daquele “evento-chave” de 2011, como se a cada jogo eu tivesse que reafirmar o quão grêmio eu sou, tivesse que demonstrar meu fanatismo, pois qual é a graça de torcer de forma saudável, separando o torcedor do time? cada gol que levamos do gabigol representa três anos de vida a menos, cada notícia sobre o joelho do suárez ataca a sinusite na hora, cada 3 pontos que não somamos no brasileirão é o fim dos tempos, vamos virar um time sem divisão nenhuma, que horror. e isso tem muito a ver com o fato de que, se o grêmio sou eu, eu quero sempre o melhor pra ele, pois logicamente isso significa que também estou bem.

sendo realista, no entanto, não é assim que funciona. talvez eu e o grêmio sejamos uma coisa só mas eu sou muito mais do que ele, e ainda bem que ele também é infinitamente mais do que eu. o amor que eu sinto pelo meu clube é indestrutível, mas isso não significa que ele pode destruir os meus sentimentos no dia-a-dia, interferir no meu emocional dessa forma tão brusca como eu tenho permitido que o faça. talvez alguém que não acompanhe futebol fervorosamente ache tudo isso uma lorota das brabas, mas pensem nas suas paixões, nos seus hobbies e em quantas vezes vocês já se deixaram levar pelos sentimentos causados por eles. isso me soa como algo humano demais, a busca por elementos externos que nos façam sentir parte de algo significativo, maior do que nós, até da perspectiva espiritual e celestial mesmo, ou até mesmo filósófica, à procura de um sentido para tudo isso.

por fim, trago aqui uma discussão que tive com nicoletti sobre futebol. ele veio me falar que futebol não é um esporte bom porque são muitas, tantas e várias variáveis que têm que se encaixar para sair um gol, os times fazem esforços hercúleos e muitas vezes o placar nem sai do zero, tem vezes que o campo tá ruim e quase não dá jogo, o zagueiro erra um passe e lhe custa todo o trabalho do ano, um atacante aproveita uma bola açucarada de um colega de time aos 47 do segundo tempo e não perdoa, são inúmeros micro-lances que se tornam passes e jogadas e chutes a gol e quiçá o famoso e desejado, ou temido, gol.

eu: bom, mas a graça do futebol é exatamente essa, é um troço espiritual mesmo, envolve principalmente a emoção dos envolvidos. ele: sim o time tem que conjurar o gol, isso é bom, mas tecnicamente como esporte é ruim; por isso que o guardiolismo é tão poderoso, ele diminui essas variáveis o máximo possível. eu: to entendendo o que vc tá dizendo, mas pra mim são essas as coisas q fazem o futebol ser bom, quando funciona né, quando da liga, não quando somos o time desgraçado no purgatório (nota: faltou mandar um “vsf” pra essa do guardiola). ele: é. (outra nota: essa conversa rolou logo após o jogo, os dois sombrios, a mensagem seguinte é ele horrorizado com o reinaldo de vice-capitão)

nunca sei aonde quero chegar com meus textos, esse em específico brotou de mim sem que eu pudesse controlar muito, não sei nem se faz sentido mas é o grêmio, nada faz sentido!!! e eu também sigo sem direção, apesar de que finalmente reconheço alguns pontos insalubres na relação com o mundo ao meu redor e vejo a vida se ajeitando constantemente para o melhor, seja isso qual for. tombei o copo e ontem ele quase esvaziou, mas hoje já consigo enxergá-lo meio cheio novamente, que alegria, seria isso sede de viver? espero voltar em breve com mais atualizações!

ps: falando nisso, vocês viram quem voltou?

ele mesmo, o rei da américa, do rio, da arena, de onde mais ele quiser; bom retorno, luanzinho! (e sim, mentalmente estou aqui agora, vamos nos permitir)
Unlisted

--

--

Ambra
Ambra

No responses yet